terça-feira, março 28, 2006

O Assis Matoso ou de como se vai do racionalismo ao empirismo ou vice-versa

Desisti.
Aquilo era assunto a mais para mim. Cultura do corpo sim, mas é de maior utilidade saber escolher as circunstâncias; de forma que afastei-me de caminhos oblíquos e já que rejeitei o professor do corpo, nada melhor que enveredar pelo mestre da mente. Nem vos digo. Passei do oito ao oitenta.
Bem, eu sempre soube que os filósofos eram assim uma espécie estranha, uns escanzelados de figura mas recheados de ideias geniais, mentes abertas, se querem que vos diga. Mas mal alimentados, diria mesmo subnutridos, ou era o que eu pensava antes de conhecer o Assis Matoso. E era aí que começava a estranheza, no raio do nome porque o que ele era mesmo era Carlos Manuel. Mas pronto, eu fazia-lhe a vontade antes que ele se lembrasse que Witgenstein lhe assentava melhor. E não há dúvida que podia sê-lo, que a sua teoria ajustava-se-lhe bem. Dizia o Assis que não valia a pena indagar sobre os significados das palavras mas sim sobre as suas funções práticas. Por exemplo “charro”, dizia ele, podia ser tudo o que se quisesse, mas o melhor sempre era lançar-lhe o isqueiro e fazer dele uma forma de vida. A mim arrepiava-me um pouco que tudo se resumisse a uma estrutura formal, tanto mais que era uma estrutura volátil, que se esfumava para dar lugar a um palavreado contínuo e empastelado. E ia-lhe dizendo que podíamos conversar no quarto. Porém, o Carlos, do alto dos seus quase dois metros, olhava para a maçaneta da porta e dizia que a metáfora visual ali presente se desmaterializava logo que o olhar dele se desviasse para outra realidade criada e que o real não era apreensível a não ser pela crença. Logo, o lado de dentro do quarto era criação minha.
Comecei por beber-lhe as imagens linguísticas, à falta de melhor uso do órgão da fala. Depois insisti que podíamos existir em comunhão de fenómenos, que são coisas percebidas pelo corpo.
E ele, que não, que toda a coisa em si não passa de percepção da consciência. Mas sempre do lado de fora do quarto. Quase garanto que ele nem me ouvia, tal era o efeito da sua pedra filosofal.
O mais que consegui foi outra tirada racionalista:
“A verdade é uma incerteza objectiva que depende de um processo de apropriação caracterizado por uma apaixonada interioridade”. E foi assim, a recitar Kierkegaard, que se dirigiu para mim de copo na mão, tropeçando nos cabos que atravessavam o chão da sala em direcção ao computador. De forma que, estatelado sobre uma pilha de livros abertos, dizia ainda que só Wagner podia salvar a cultura alemã.
E a mim, já a salvo, do lado de fora da porta do apartamento, só me ocorreu a máxima da Madame de Stael: “quanto melhor conheço os homens mais gosto dos cães”.



9 comentários:

Anônimo disse...

Tu realmente leva-nos a outros mundos numa espiral de sentimentos. Nada como ficar a salvo, de preferência do lado de fora e terminas...genialmente! :)

Lúcia disse...

desta vez a coisa correu mal para os teus lados.
outros dias virão...

antónio paiva disse...

.....minha querida Fausta, eu não me canso de te avisar, andas a dar os passos certos na direcção errada, minha querida faz um retiro, medita purifica-te e regressa, antes que seja tarde.....

Beijinho meloso ;)

admin disse...

Rendo-me, Fausta! Este texto está brilhante. Trouxeste-me à memória a 'Filosofia de ponta' e o seu saudoso autor, Júlio Pinto. Está lindo!

mfc disse...

Minha amiga.. não se pode vencer sempre!!

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

a Madame Stael? aquela que foi precursora do romantismo? dizia isso? ó valha-me deus! nunca nos dizem o que devem dizer! olha se eu tivesse sabido disso há vinte anos! mas não, é coração para aqui, amor pr'acolá, corpo e espírito unidos e o catano...
(enfim, falta-me tb a tua experiência)

ivamarle disse...

os cães não filosofam, daí a sua grandiosidade!!!!!!!!!!

mixtu disse...

... mas dos cães...
és tão má, lol
jinhos

Maria Arvore disse...

Passar dos 8 aos 80 é o melhor caminho a ser trilhado mesmo que o resultado imediato não seja o melhor.
É que encontrar um homem com duas cabeças é como procurar agulha em palheiro. É preciso muita pesquisa de campo, muita pesquisa! ;)