quinta-feira, outubro 27, 2005

Tomaz

Foi a chuva de hoje que me fez lembrar o Tomaz. Só pode ter sido o efeito da água na memória e da roupinha molhada no corpo. Não sei se consigo desvendar a ligação da meteorologia com o namorado mais efémero de todas as minhas histórias; nem sequer vou tentar aproximações. Só preciso de rascunhar meia dúzia de palavras para poder dormir descansada hoje sem a imagem dos jornais diários a entrar-me nos sonhos.
Meia dúzia é força de expressão; terão de ser trinta e cinco palavras ou trezentos e setenta caracteres, incluindo os espaços. Será que o consigo descrever com tanto esforço de síntese, eu que sou dada às palavras e aos desenvolvimentos?
Estão a ver a coisa (ai, se ele me ouvisse diria, no seu estilo de mestre, com entoação da linha para compor o quadro: “ouça lá!, a-coi-sa-é-a pa-la-vra-MAIS-usa-da-pe-los-por-tu-gue-ses-quan-do-NÃO sa-bem-o-que-querem-dizer!”).
Rapaz esguio, ténis de marca na base, rolex a meio, preso na ganga negligentemente cuidada das calças e brinco no topo afirmando-se discretamente no lóbulo esquerdo. Era assim que o Dr. Tomaz Águas dialogava comigo. Ou antes monologava. Ele era o desentendimento com o chefe de redacção p’ráqui, ele era o índice de penetração p’racolá, passando tudo muito pelo elemento catalizador ou pela visão global traduzida nas questões de referência. Mas tudo Depressa e Claro!
“Diz-me isso em trinta e cinco palavras!”, pedia ele, quando eu lhe pegava nas mãos para uma daquelas prelecções de enamorados que, à minha maneira, iria terminar no calor de um beijo.
Fui, pois, perdendo o entusiasmo. E, num dia de chuva como o de hoje, já muito fartinha de tanto calculismo, à mistura com tanto rigor legal, voltei a colocar todo o lixo na oralidade e fiz manchete de uma sigla obviamente mediática – RTP (raios te partam).

F.P.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Fábio

Eu sei que os anos vão passando e que as oportunidades vão fugindo. Miúdas há-as por aí de toda a espécie e o apelo é forte – tivesse eu vinte anos e já tinha mandado gravar uma tirinha de línguas de fogo em tons de azul ali mesmo acima das nádegas para poder usar calcinhas de cintura descida. Assim, tenho de esperar que a dieta da seiva de pinheiro faça efeito para vencer os cinco quilos que se acumularam nas coxas. Resistência heróica a dos quilos, diria mesmo; já ando a ficar sem paciência para resistir às coisitas doces que me apoquentam o serão.
É por isso que, mesmo valorizando a literatura, a poesia, a escultura contemporânea e os blogs, que uma mulher deve ser culta, tenho uma feroz preocupação com a minha imagem. Gabinete de estética, massagens, mesoterapias, dietas férreas e caminhadas pelos circuitos de manutenção de todos os parques da cidade, roubam horas à minha vida e cobertura ao meu cartão; mas esta parte não é para desenvolver que o tempo vai mau para histórias deprimentes.
É por tudo isto que não perdoo ao Fábio ter atirado com aquela frase no final da noite, depois de o ter levado a jantar e de termos dançado, em ambiente ameno, até de madrugada.
É claro que os seus vinte e seis anos lhe permitem uma resistência que eu já não tenho, mas de aparência, diz ele, nada a apontar. Então se não há nada a apontar por que me faz ainda eco a frasezinha com que se despediu pela manhã, enquanto apertava o botão das jeans junto ao corpinho escultural que deus lhe deu e se preparava para voltar a casa dos pais:
“Deve ser da idade” – disse ele.
Meu amigo, o blusão de couro vem recambiado e o resto vamos a ver.
Ó se vamos!

F.P.

terça-feira, outubro 11, 2005

Lino

Noutros tempos combatiam os homens por verdades de fé, transportando consigo os símbolos em estandartes que exibiam sob os céus das suas convicções.
Cruzadas as espadas, ensanguentados os símbolos, permanecia a crença.
É de cruzada que falo quando digo paixão.
Paixão de vestes roxas, alma em chagas de cada vez que baixo as armas, convencida de estar à porta do edifício mais sólido, disposta a dar tudo pela aposta na fé. Sei que tudo o que existe se transforma em pó. Assim tem sido com cada um dos homens que passam pela minha vida. Não eles, mas a aposta, ou a fé, ou os sons do piano, ou as páginas dos livros, ou as promessas. Não as deles, mas aquelas que eu idealizo, que eu suponho ouvir nas suas palavras, cruzadas com as minhas.
Nada foi verdade. Ou nada permaneceu.
Dividir um grão de pó ao meio, façanha científica ou êstase religioso, seja lá o que for o desafio, é coisa de engenharia espiritual. E dela resulta uma transcendência materializada num ser de formação técnico-mística que me encantou com a sua escrita colorida - Lino Centelha.
Aqui lhe presto homenagem.

F.P.

domingo, outubro 09, 2005

Jorge Rebelo Tinto

Eu já devia estar avisada sobre a complexidade da mente artística. Não é que cada homem seja um artista ou contenha em si um artista, que as artes masculinas são assim umas coisas mais ligadas ao bricolage, coisas de encher garagens ou arrecadações com todas as inutilidades que já não cabem em casa. Mas dizia eu que devia estar avisada sobre as artes ditas nobres, uma vez que o pianista e o dançarino tinham arte inata e nem por isso deixaram intacta a minha alma apaixonada. Artifícios da vida! E se a vida não é mais do que um rame-rame feito de rotinas pasmadas, de vez em quando lá cedemos à pitadinha de loucura que um artista traz e transmite ao cinzentinho dos dias.
E assim dizendo, ou assim pensando, deixei o Jorge Rebelo Tinto instalar-se na minha vida. Ele depois disse que fui eu que me instalei na vida dele, ou melhor, na casa dele, mas foi a solução para estarmos perto, que o Jorge não arredava pé da mansão de família cuja sala cheirava a cinza velha, a mofo e a couros furados pelo bicho entranhado há décadas. Dizia que precisava da minha companhia para lhe inspirar uns textos, mas hoje desconfio que a inspiração tinha outras fontes, pois de mim pouco mais queria do que umas refeições a horas certas e umas garrafas de V.Q.P.R.D. para alegrar o fumo das cigarrilhas. E falava de amor, o Jorge. Amor em versos emparelhados, sonetos de rima pobre, repetidas as palavras de paixão em acessos de euforia que lhe agudizavam o tom de voz.
Por amor apliquei cera nos ladrinhos, preto- branco, branco-preto, para que o cheiro a passado o encantasse nas noites de Outono, quando a chuva batia nas vidraças grandes e ele dizia inspirar o cheiro para se inspirar para as letras. Inspirava também eu, farta do tec-tec da máquina de escrever, pela noite dentro, para depois suspirar de pasmo e de abandono.
Por amor desfiz os fios das teias que aprisionavam as histórias às paredes, dizia ele; recuperei a armação do globo, já tombado sob o peso universal das suas escritas famosas e trouxe folhagem dos jardins para encher jarras de cristal antigo.
Foi também por amor que avancei a quantia necessária à edição de autor com que fez sair o último livro, entre choros de homem sensível e beija-mãos lambuzados de gratidão.
Depois disso não avancei mais nada. Nem por amor. A não ser a marcha-atrás que agora faço sempre que um homem me diz que gosta de palavras, a querer já meter-me na frente dos olhos textos adornados de poesia, olhando-me com ar de quem espera elogios e aprovação. Malditos escritores famosos!

F. P.

sábado, outubro 08, 2005

Julião

Conheci-o numa pista de dança, entre fumo, decibéis e olhos a piscarem. Destacava-se entre os demais, pés colados ao caleidoscópio do piso, enquanto todo o corpo abanava saindo dele, a um tempo, a rotação e a translação da terra. Fechava os olhos e acolhia um continente inteiro nos braços abertos, enquanto as ancas erotizavam o ritmo da música. Pista cheia em noite de sexta-feira, abandonado o dever dos dias pela troca voluntária e desejada, cheiro a corpos já transpirados mas ainda com o aroma frutado do duche que antecedeu os arranjos ao espelho, ensaio de gestos semanais nos outros, os que imitavam a natureza enraízada dos genuínos.
Fiquei colada ao movimento que saía daqueles poros castanhos, enquanto o tecto rodopiava sobre a minha cabeça, um pouco entontecida de gins tónicos e cigarros no cinzeiro que o empregado careca vinha zelosamente substituir.
Colada aos olhos que piscavam, os meus pela cinza do fumo que envolvia já os pensamentos, os dele pela tontura cega que saía dos meus, segui em hipnose até ao centro da pista e enlacei-me nele. Enlacei o aroma achocolatado da pele molhada, o colorido dos panos e o som das mornas sob o sol queimado. Julião correspondeu ao meu abraço e levantou-me no ar, primeiro, pousando-me depois na sua frente, olhos nos olhos ao sabor da música que não parava, não parou a noite inteira, entrando eu na euforia da dança ou a dança em mim, que a destrinça era difícil e a embriaguez impossibilitava o discernimento.
E quem desejava o discernimento naquela noite feita de ritmos e afagos, eu?, ele?, alguém ali na pista queria parar para pensar um pouco no dia seguinte ou no dia anterior ou apenas num pequeno pedaço de tempo que não fosse o da oposição alternada da luz, entrelaçada no som e nos movimentos do corpo?
Apaixonei-me. E vivi, numa noite, o ritmo e a cor inteira de um continente para além do meu.

F. P.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Francisco

Quando vivi com o Francisco já ele estava viciado nas conversas on line. Fazia serões alongados pelas madrugadas e deitava-se quando a luz do dia já entrava pelas janelas do apartamento. Nessa altura eu tinha de me levantar – a um de nós cabia o dever de suportar as despesas da casa – para me dirigir ao balcão da pastelaria Flor da Terra, onde passava o dia a tirar bicas e a servir meias de leite e sandes de queijo, se era manhã ou a pegar à pinça folhados de salsicha e croquetes, pela hora do almoço. Tinha depois uma escassa hora para engolir a sopa e nesse intervalo subia as escadas para chegar ao terceiro andar encontrando-o, invariavelmente, deitado.
Je suis fatigué” dizia-me, quando lhe abria a porta do quarto, hábito que lhe vinha da infância ainda fresca, pensava eu, enquanto desligava o computador para encurtar a conta da electricidade, recebendo depois um “alors, que fizeste tu?, eu preciso de travailler!"
Fora a mãe que lhe falara naquele trabalho, que podia ser feito a partir de casa, pois o Francisco não se adaptava ao convívio com as outras pessoas que lhe observavam o hábito de comer croissants a toda a hora e recebiam com estranheza a sua pronúncia. Se fosse numa grande cidade, une grande ville, dizia ele, lembrando os dias da metrópole francesa, ninguém reparava nas diferenças, mas ali, na vilazinha dos arredores, todo o mundo se interessava em saber os detalhes e isso enervava-o; “ça m’enérve", dizia ele enquanto ligava de novo o aparelho para ficar em contacto com o mundo.
Havia dias em que o Francisco parecia não ter mãe. Nesses dias assumia outra alma e esquecia o acento, para falar pausada e ininterruptamente de coisas que me eram estranhas. Dizia-se trompetista e parecia recordar melodias que trazia escritas desde sempre, ou que lhe saíam de improviso, era quase impossível saber porque a pessoa negligente que dormira durante todas as manhãs despertava da letargia e ganhava uma força que o mantinha acordado dias e dias, sem descanso nem lamúria. Falava e voltava a falar, precisando que eu me sentasse calmamente a ouvir as suas prelecções, esquecendo até que me esperava o balcão da Flor da Vila para o ganha pão, dizia eu, recebendo em troca o riso escarnecido de um ser à beira da transcendência. Amiúde puxava do trompete e soprava, soprava forte, tingindo-se o seu rosto de vermelho vivo, enquanto as paredes estremeciam e os vizinhos gritavam queixas.
Ter-me-ei apaixonado, penso agora, mas já não consigo recordar o porquê das coisas do sentimento.

F. P.