quinta-feira, outubro 06, 2005

Francisco

Quando vivi com o Francisco já ele estava viciado nas conversas on line. Fazia serões alongados pelas madrugadas e deitava-se quando a luz do dia já entrava pelas janelas do apartamento. Nessa altura eu tinha de me levantar – a um de nós cabia o dever de suportar as despesas da casa – para me dirigir ao balcão da pastelaria Flor da Terra, onde passava o dia a tirar bicas e a servir meias de leite e sandes de queijo, se era manhã ou a pegar à pinça folhados de salsicha e croquetes, pela hora do almoço. Tinha depois uma escassa hora para engolir a sopa e nesse intervalo subia as escadas para chegar ao terceiro andar encontrando-o, invariavelmente, deitado.
Je suis fatigué” dizia-me, quando lhe abria a porta do quarto, hábito que lhe vinha da infância ainda fresca, pensava eu, enquanto desligava o computador para encurtar a conta da electricidade, recebendo depois um “alors, que fizeste tu?, eu preciso de travailler!"
Fora a mãe que lhe falara naquele trabalho, que podia ser feito a partir de casa, pois o Francisco não se adaptava ao convívio com as outras pessoas que lhe observavam o hábito de comer croissants a toda a hora e recebiam com estranheza a sua pronúncia. Se fosse numa grande cidade, une grande ville, dizia ele, lembrando os dias da metrópole francesa, ninguém reparava nas diferenças, mas ali, na vilazinha dos arredores, todo o mundo se interessava em saber os detalhes e isso enervava-o; “ça m’enérve", dizia ele enquanto ligava de novo o aparelho para ficar em contacto com o mundo.
Havia dias em que o Francisco parecia não ter mãe. Nesses dias assumia outra alma e esquecia o acento, para falar pausada e ininterruptamente de coisas que me eram estranhas. Dizia-se trompetista e parecia recordar melodias que trazia escritas desde sempre, ou que lhe saíam de improviso, era quase impossível saber porque a pessoa negligente que dormira durante todas as manhãs despertava da letargia e ganhava uma força que o mantinha acordado dias e dias, sem descanso nem lamúria. Falava e voltava a falar, precisando que eu me sentasse calmamente a ouvir as suas prelecções, esquecendo até que me esperava o balcão da Flor da Vila para o ganha pão, dizia eu, recebendo em troca o riso escarnecido de um ser à beira da transcendência. Amiúde puxava do trompete e soprava, soprava forte, tingindo-se o seu rosto de vermelho vivo, enquanto as paredes estremeciam e os vizinhos gritavam queixas.
Ter-me-ei apaixonado, penso agora, mas já não consigo recordar o porquê das coisas do sentimento.

F. P.

Um comentário:

Mónica disse...

ok! percebi a brincadeira, tava a ficar assustada lol ;-))