sexta-feira, outubro 27, 2006

In fraudem legis


Primeiro quis vendar-me os olhos. E eu, no uso da capacidade de gozo dos meus direitos, achei que o patrocínio das partes, que ele tanto apregoava, tinha todas as possibilidades para dar origem a uma ratificação no mínimo à altura do órgão competente. Era tudo uma questão de pró rata.
A definição das coordenadas fundamentais da posição de cada um deixava-me a braços com os fundamentos do direito. Tinha-se constituído, pois, a situação ideal para verificar a constitucionalidade da matéria formal, adiada vezes sem conta por falta de comparência da minha parte.
Incisivo – dizia ele – podes crer!, nunca menos do que isso!
Para mim incisivo era assim tipo curto e grosso; mas… in dubio pró réu, pois os meus preconceitos são facilmente contornáveis quando se trata da análise detalhada do corpus. Parto sempre daí, como manda a metodologia de qualquer recherche.
Mas eu conto: a insistência aguçou-me a curiosidade, embora o nosso conhecimento tivesse ocorrido numa situação chata: foi na altura do meu primeiro divórcio e ele teve aquela atitude paternalista do homem que, viciado na tutela dos mais fracos, achou que devia bater-se pelo habeas corpus, dando um murro na secretária quando lhe disse que a outra parte ansiava pelo contencioso.
Desde então ficou sempre pendente entre nós uma promessa de deveres recíprocos, mas ele tinha-se queixado de uma disfunção intestinal e eu, na altura a braços com merda suficiente para me atolar, ad cautelam, não dei azo ao trato proposto, até porque me fartei daquela conversa do direito potestativo. Não sou de ficar à espera que os braços de um homem me protejam das agruras da vida. Coitados, nem o direito patrimonial lhes confere a autonomia que uma mulher traz à nascença, quanto mais uns braços deontologicamente estatuídos.
Mas a minha curiosidade mata-me. Aquilo da concepção contratualista da sociedade fez eco durante uns tempos, até porque não sendo eu mulher de coacções, quando me ponho sobre a matéria não descanso enquanto não vou até ao fundo.
Aceitei, pois, ficar de olhos vendados. Mal sabia ele que estava a alimentar um dos meus fetiches. Oh deuses… até me senti desfalecer ante a perspectiva da aplicação do direito, assim em animus jocandi. O que depois me meteu raiva for a pega que ele me pôs na mão, associada a um tilintar de ferros. Sujeitei-me à contra ordenação e, ex abrupto, tirei a venda, não fosse o doutor estar à espera de uma violentação com base na matraca.
Uma balança? Para que queria ele que eu segurasse a balança? Teria dúvidas sobre o peso da sua matéria orgânica? Seria alguma regra de conduta sancionada e promulgada pela Ordem? Um modus operandi que eu desconhecia? É que há gente que, de tão normativa, consegue perder o sentido do gozo dos seus direitos! Que natureza social seria a daquele indivíduo, ali de joelhos no chão, a pedir-me sigilo ainda antes de iniciar a sessão.
Meto-me em cada uma!
De olhos esbugalhados encarei a caducidade da coisa como uma afronta e, sem apelo nem agravo, disse-lhe que não havia acórdão que resistisse a tamanha humilhação. A dele, porque para mim foi apenas mais um fracasso para a minha colecção...
E saiu-me, assim de rompante, ipsis verbis, esta chave de ouro: “olhe, querido, ponha a sua capacidade jurídica num dos pratos da balança que eu ponho a minha capacidade de gozo no outro. Vai ver qual de nós terá de ir à procura de um órgão mais competente!”

domingo, outubro 22, 2006

Fados e montarias

“… morreeer a cantar o faa-ado, nos braaaços de uma mulhee-er.”

Imaginem isto cantado com uma voz potente, acompanhada pelo trinar de uma guitarra portuguesa. Depois imaginem o dono da voz, de lenço às cornucópias bem ataviado por dentro dos colarinhos imaculados, copo na mão, calcanhares em riste nos agudos, arrancados aos solavancos da tristeza, da traição, da saudade e da desgraça.
E a seguir palmas. Os botões do casaco é que quase fugiam, num esforço um nadinha sebento para aguentar o inchaço do peito, na altura da ovação.
Quando as luzes aumentavam de intensidade dava-se conta da névoa de fumo de tabaco. Cheirava a morcela assada e o bacalhau à lagareiro deixou no prato um rasto de enjoo regado a azeite, aliviado apenas pela languidez do olhar fadista. “Mais um jarro, que o tinto engrossa a voz!”
Não se pode dizer que houvesse grossura nos gestos, mas finura é que nunca; ele era lá desses! Naturezas invertidas só a do criado de mesa, arrastando as sílabas finais com uma mão em riste, virada do avesso. Exemplar magriço que a trenga da mesa ao lado atabafava com o busto a descoberto, numa provocação meio despida que ela sabia não colher. São malévolas as mulheres inchadas pelo excesso daquelas drogas do bem-estar fingido. Mas não era para o busto dela que o fadista olhava... Lancei-lhe eu o feitiço ou foi a nostalgia do palavreado que nos atraiu?
Abri-lhe os braços, depois do sorriso e do esbugalhar de olhos que o deixou babado. Quer dizer, não abri propriamente os braços mas prometi-lhos e ele, habituado a estas lides, não se fez rogado na resposta.
Acendi um cigarro e levantei-me. Olhei-o de frente quando o contornei, como se estivesse a desafiar o touro para uma pega de caras. Fingi que ia sair.
Quando voltei tinha-o à perna. Piscou-me o olho. A noite estava ganha.
Ainda faltava um fadista no meu currículo; a ocasião não era para esperas. Dali até a casa seria uma eternidade e ele estava com pressa de pôr a viola no saco.
A noite fora cansativa mas homem que é homem conserva o vigor pela madrugada dentro e nem o mais pintado sabe assim as manhas do encanto imediato; o fado existe!
Porém, não obstante o carro ser espaçoso … o das cornucópias cor de mel sobre o azul do atavio queria-me, primeiro, a relinchar. Só depois é que ele conseguia iniciar a performance.
E eu, que até gosto de práticas equestres, sentindo-me ali mesmo muito defraudada, rumei ao picadeiro mais próximo e larguei-o junto à box da Giovanna, a égua mais bravia da colecção de raridades do Conde da Malveira.



domingo, outubro 15, 2006

... a pão e água!!!

A gente olha para um gajo e pensa: que pão! Ui, com a fominha que tenho…
Depois passa-nos assim uma coisa pela vista e pronto, lá vêm os males todos em catadupa: o pão tem glúten e às vezes bastam os hidratos de carbono em excesso para começar a desgraça; o leite tem caseína – dizem que mamar é coisa só mesmo para os bezerros; os doces têm açúcar, mas mesmo com edulcorante parece que não resulta porque aquilo que é alternativo faz ainda pior do que quando é ao natural; a carne é louca, o peixe tem mercúrio, os legumes crus têm resíduos agrotóxicos, o churrasco têm benzopirenos, o ovo tem colesterol, a salsicha tem gordura, a fibra enche o intestino, as coberturas são artificiais, a cafeína cria dependência, os aditivos são cancerígenos, os intensificadores de sabor provocam mal estar e palpitações, os conservantes provocam reacções alérgicas, um cachorro quente vem com aquele excesso de ketchup, para não falar nas gorduras saturadas de uma fatia especial de bacon, a meio de uma espetada mista.
Raios!
Nem uma fatiazinha de pão magro?
Qualquer dia estamos assépticas, ingerimos coisas inócuas como iogurtes magros e saladas de alface sem tomates, passamos a vida a fazer caminhadas para perder quilos, a olhar para eles, musculados que nem cavalos, esticadinhos nas flexões, agarrados àqueles troncos provocatórios dos mini-circuitos de manutenção dos parques das cidades. E litros de água... que é para andarmos sempre a fazer aquela triste figura do "desculpas-me uns minutos... é que tenho de ir à casinha!"
É que nem uma bejeca atoladinha de espuma a deixar marcas nos lábios!
E nem a porra de um cigarrito na boca, para não corrermos o risco de exibir em público um objectozinho fálico que dantes era apanágio masculino e que as mulheres tão bem souberam transformar em glamour, quando cruzam a perna e … olham para o pão sem lhe poderem tocar antes de lhe conhecerem o conteúdo nutricional…
Puta de vida!

domingo, outubro 08, 2006

reflectindo sobre a "cornada"...

Pediu-me para lhe fazer o curativo.
Eu? A tratar de um gajo ali, em posição de louva-a-deus, de joelhos flectidos, com o sangue a correr-lhe pelas nádegas?
Viram bem a dimensão da cornada? Ali mesmo no centro do traseiro, com a ponta a enfiar-se, aguçada, pelos esfíncteres, meu deus, só de pensar na dor até me dá náuseas.
Mandei-o logo para as urgências mais próximas, tanto me dá que sejam ali na esquina como a oitenta quilómetros, o problema é dele!
Será que aos homens faz falta a activação da adrenalina em ousadas e exibicionistas performances, só para colherem aplausos? Com cornos a espetarem-se nos esfíncteres?
Por que razão não se empenham verdadeiramente numa exibição mais íntima, mais aconchegada, com mostras de virilidade entrelaçadas com ternura e carinho?!
Podia ser apenas um momento, não interessa que as representações sejam eternas, mas um momento de entrega, de verdadeira entrega vale seguramente mais do que quinze minutos de fama com o desenlace na ponta de um corno!

Bem… já estou a lamechar e isso não faz parte da minha natureza faustosa.
Mas como compreender os homens, se eles nos fogem do abraço?

Só pode ser medo.
Um abraço feminino deve ser mais doloroso que a cornada de um touro em pontas.
Nunca vou conseguir compreender os homens!

quinta-feira, outubro 05, 2006

El toro


Nem sequer foi por uma questão de língua. Entendemo-nos perfeitamente e a dele era bastante acessível.
Também não me parece que as estocadas tivessem sido desperdiçadas; diziam que ele empregava quanta força tinha e o ferro nem dobrava, ia direitinho ao alvo à espera dos aplausos. Até me babei com a descrição.
Fui em corrida quando soube que ele bandarilhava pelos dois lados, como manda a tradição, após o duro castigo das varas. Gosto de castigos à antiga portuguesa, daqueles que nos fazem garbosas depois de apreciarmos o instinto e a força de alguém que vibra quando irrompe naquele espaço redondo.
E foi assim que entrei nesta lide.
Vi-o, pois, ajustar a taleguilla e colocar-se em posição, perfilando-se para a luta. Dizia que aquele trabalho exigia uma entrega total e que antes, dado o perigo iminente, tinha de dedicar uma oração à Virgem. Nessa parte da conversa tive uma vontadinha de rir que nem imaginam, mas contive-me, não fosse o “Chico” pensar que eu era descrente.
Falou em capote, o que me deixou bastante tranquila. Normalmente ninguém liga muito a esse pequeno acessório, mas gostei que ele tivesse demonstrado a sua nobreza com essa sugestão.
E lá estava ele, baloiçando o corpo num vai vem constante, de mãos nas ilhargas.
Depois destes preliminares benzeu-se e atirou o corpo todo de uma vez, exibindo a arte de fazer frente à fera, dizia ele. E eu a aguçar as garras...
... enquanto ele se ficava assim… dizendo umas coisas estranhas:
“Con siete años me enfrenté a un becerro y a los nueve debuté en público. Y ya me di cuenta de que me gustaba realmente”.
- Valha-me a santíssima Macarena! - pensei eu - que coisa é esta que me saíu na rifa. Bezerros? Aos sete anos?
Depois perguntou-me se eu gostava de actuações com muleta.
Então ... depois da promessa do tércio de varas e bandarilhas ... vem-me falar de muletas?
Entrei eu nesta lide para ficar apeada?
Bravura, meu caro! Só se for na ponta dos cornos!