quinta-feira, novembro 17, 2005

Ângelo

Conheci-o no balcão do auditório, num concerto para piano em que se tocavam os nocturnos de Chopin. A mim surpreendeu-me a forma com que se entregou à melodia, deixando que os dedos seguissem a música, gestos automáticos saídos de umas mãos finas cuja transparência era atravessada pela escassa luz que iluminava a sala, concentradas as atenções no palco. A ele surpreendeu-o a atenção com que eu o olhava. Abeirou-se de mim com os olhos, numa comunhão musical que me tocou por dentro. Apaixonei-me.
Devíamos estar avisadas, nós as mulheres, acerca da natureza dos homens. Particularmente daqueles que se deixam inflamar na plateia de um auditório, parecendo deuses em contra luz. Ou querubins translúcidos, quase assépticos no aspecto, cristalinos, frágeis.
Tinha umas mãos longas, mãos de pianista, pensei, enquanto lhe captava os gestos.
Toda a vida sonhei ter um piano e saber usar as mãos coordenadamente, uma para umas teclas, outra para as outras, sons simultâneos, sobrepostos na harmonia da composição, dedos que corrrem ao de leve sobre o branco dos sons. E ter, sobre o piano, os desenhos da melodia, escritos em linhas finas, paralelas, clavilíneas, provocando os olhos ou pondo-os à prova, na sua atenta tarefa. Ângelo passava os serões de olhos fechados, deixando que os dedos seguissem a música; dimimuía a intensidade da luz na sala e era como se um piano lhe estivesse à distãncia das mãos esguias. As horas costumavam passar sem que ele sentisse a demora das noites e, nas madrugadas mais frias, acabava a tremer, não sei de de frio apenas, se de emoção conjunta. Se me sentava a seu lado sentia-lhe o cheiro a lavanda ou a hortelã, não sei bem, mas ocorria-me pensar numa bolsinha de flores secas dentro de uma gaveta de roupa lavada. Se ficava a olhá-lo do lado de cá da porta, sentia-me a mirar a estátua de um deus. Em certos dias deitava a minha cabeça no seu colo e arrefecia com ele, sem que a comunhão dos corpos acrescentasse temperatura ao frio das noites. O que tinha ali, ao alcance das minhas mãos, era um deus sentado, de olhos brilhantes mas gelados, estátua bela, ilusão em notas musicais.

8 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

pois é, essa projecção no mestre pode fazer penar muito !!!

gostei de conhecer o Angelo. gosto sempre dos teus ex. mesmo que sejam gelados.

Kabum disse...

engraçado

Toze disse...

Muito Bom (não o Angelo) ...o texto :)))

mfc disse...

Mais um texto bem construído.
E depois?? O Ângelo? Que lhe aconteceu?!

Fausta Paixão disse...

O Ângelo?
Ainda lá deve estar feito estátua!

Leonor C.. disse...

Os Ângelos são ângelos e está tudo dito! Ainda por cima com uma aura musical... menina... Quando damos conta já estamos a ser transportadas ao 7º. céu! Só que este ângelo tem sexo: masculino. Rastaparta os homens!

Leonor C.. disse...

Pelo menos já sei que tens uns olhos intensos... Como é que os homens hão-de resistir...

mfc disse...

Olá
Um grande abraço...e sabes uma coisa?
Conheci alguém parecidíssima contigo!
Ele há coisas....
Um beijo.